Somos uns agarrados!

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Despertou-me a atenção um comentário que li nas redes sociais, a propósito da publicação de uma imagem do festival “Musical Açores 76”, que se realizou no areal da praia da Riviera (Praia da Vitória), em julho desse ano. Reza a história que terá sido o primeiro festival de verão realizado em democracia e o segundo de sempre, em Portugal, depois de um Vilar de Mouros. Nesse comentário, lia-se qualquer coisa como “as coisas boas que já se fez na Praia… Esses é que eram bons tempos!”

Acho sempre curiosa esta ideia de que as coisas que passaram foram sempre melhores do que as atuais. De que, “no antigamente”, tudo era perfeito. A alimentação era a mais equilibrada e melhor para a saúde. Comíamos o que a terra dava, trocávamos batatas por couves, era tudo muito saudável e jantávamos sopas de leite, com leite saído diretamente das tetas da vaca para a tijela, com açúcar de beterraba de São Miguel, acompanhadas por linguiça frita e ovos estrelados com gema bem amarelinha. Éramos muito felizes e a escola educava os nossos filhos convenientemente. Havia respeito e as pessoas eram muito cultas e liam muito. As crianças brincavam nas ruas, havia festa, fartura e as ruas das nossas cidades e vilas andavam cheias de carros e pessoas e toda a gente ia à missa e às confissões. Não havia a pouca-vergonha dos dias de hoje, droga, paneleirice e raparigas desfloradas. O dinheiro agora não dá para nada e vê-se mais pobreza e miséria do que nunca. As coisas lindas que se fazia e toda a gente “consoluava-se”. As sociedades cheias de homens. Os teatros de variedades a abarrotar de mães e de canalha. Os espetáculos no antigo Salão Teatro Praiense e no novo auditório do Ramo Grande cheios de gente de Angra que também davam movimento às ruas e ao comércio da Praia nos feriados de dezembro. Tudo isso se acabou. Até os restaurantes ficaram vazios. Que falta fazem os americanos.

Temos sempre a tentação de olhar para o passado com os olhos enevoados pelo branqueamento. Na nossa memória, pelo menos na verbalizada, sobram aquilo que de bom aconteceu e olvidamos o que de mau esse passado tinha. Esquecemos, também, o papel que cada um de nós lá teve e que tem, na atualidade, para que as coisas sejam diferentes.

Relativamente ao comentário ao nosso Woodstock, seria importante perceber o que, nessa altura, se pensou daquele festival. Quem lá esteve, quem o apoiou ou, até mesmo, perceber se, em vez de em 1976, o festival se realizasse hoje, em 2023, nos mesmo moldes, quem lá iria. Foi arrojado. Houve coragem e iniciativa. Também seria pertinente perceber quem, hoje, ou ontem, aqui da Praia, frequentou as atividades culturais, foi aos concertos no auditório, faz compras no nosso comércio ou vai ao mercado municipal. Já agora, e para entrar no registo do grande saudosismo, quem vai à missa ou participa nas procissões.

Esta visão idílica do passado é perigosa. Faz-nos esquecer que, hoje, temos acesso a melhores cuidados de saúde (com defeitos, é verdade), vivemos até muito mais tarde, a melhor educação (também com defeitos), temos mais e melhor formação, a medicamentos, a alimentos em abundância e variados, a acesso à informação, a mais e maiores horizontes. Viajamos mais. Compramos muito mais. Temos carros e todos os demais brinquedos para adultos, até televisão a cores. Mais do que uma. Saibamos nós dar conta disto tudo. Esse, talvez, seja o grande problema: somos maus cidadãos. Não participamos, não opinamos, não exigimos. Queremos ter tudo. Mostrar que temos tudo. Mas temos medo do futuro.

Nesse sonho dos tempos idos, as pessoas eram felizes. Pobres, mas felizes. Ignorantes, mas felizes. Escondidas por inaceitação das suas vontades, das suas extravagâncias, dos seus gostos alternativos, da sua orientação sexual, cor de pele ou deficiência física, mas “felizes”. As mulheres, as tais que viviam na dependência da vontade dos maridos, sem dinheiro, a levar porrada, sem emprego, sem formação, davam aquele movimento às ruas de que tantas saudades temos, simplesmente porque tinham tempo e, por isso, também eram “felizes”. Que bonita é a felicidade!

Os restaurantes, os cafés, os bares, agora voltaram a estar cheios ou, pelo menos, têm maior movimento. Quem ocupa as mesas? Não, os americanos não voltaram. Não, os locais, continuam sem os frequentar. Vieram os turistas… Veremos o que acontecerá em setembro. Nós, os que temos saudades do passado vamos garantir a sua sobrevivência, que as portas se mantenham abertas? Duvido…

É muito o tempo a glorificar o passado, ansiando pelo seu regresso. A chorar por ele, a tentar repetir as suas proezas. Algumas delas, foram-no naquele tempo, naquele contexto e, hoje, repetidas, não teriam qualquer valor. Pareceriam ridículas ou mesmo sem qualquer qualidade face aos padrões atuais. Sabemos mais coisas. Já vimos melhor. Somos mais exigentes. Somos mais informados e, dificilmente, beberíamos leite diretamente das tetas da vaca. Infelizmente, esse tempo de “agarranço” ao passado, funciona como uma droga que nos vai impedindo de olhar em frente. Tenhamos nós a coragem de seguir adiante, de sermos diferentes, de inovar ou de encontrar uma nova realidade que valorize o nosso tempo e, principalmente, o nosso futuro.

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