Ingleses e Americanos.

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Cruzei-me com o Joel na rotunda do aeroporto, a das palmeiras. Ia sentado no banco de trás da carrinha, orgulhoso e confiante, o que, nele, é bastante raro. Ao volante, a conduzir, como é, aliás, habitual (nem sei se o Joel tem carta de condução), vinha a Fernanda, a mulher, e, no lugar do pendura, alguém que não consegui reconhecer. Na caixa da viatura, ao sol, o tamanho, a quantidade e a cor das malas faziam adivinhar que o passageiro sem nome seria alguém vindo da América. Um familiar, o mais provável. Estaria aí a origem do sadio inchaço do Joel. Há vidas assim, sem outra razão para a alegria, vividas em profunda tristeza, só quebrada pelas histórias de felicidade e fartura trazidas do outro lado do oceano. Durante as poucas semanas que cá estão, ninguém será privado de nada. Haverá abundância, sonhos, esperança, ilusão de que aquelas vidas são as dele, a do Joel, apesar de tão contrastantes que o são com a sua. Viverá a vida da prima, da tia ou do irmão como se fosse a dele próprio. Contará aos amigos as conquistas, os prazeres e os sucessos como se fossem seus. Relatará o jantar na feira da gastronomia e comentará a existência de restaurantes e outros locais na ilha que só os conhecerá pela mão dos visitantes. Orgulhar-se-á desse feito. Ilude-se. Mas fica bem com isso.

Desconheço o destino da carrinha do Joel, conduzida pela Fernanda. Viraram estrada 25 de abril abaixo, no sentido da Praia. Lá no fim da linha, haverá uma casa pintada de fresco, com cortinas novas, bem asseada e cuidada. Ainda no dia anterior à chegada, Fernanda terá ido à procura da toalha de renda que lhe ofereceram pelo casamento. Cheirava a mofo, de tanto tempo guardada que estivera na arca da mãe. Praguejou contra esta humidade e este tempo que deixa tudo molhado com aromas de bafio. Condicionantes desta realidade insular. Quem tivesse um ar condicionado!

Nessa manhã, usou-se a sala. Toalha de renda, protegida por um plástico transparente, não vá algum pingo sujar o crochet. Encomendara-se bolos, rissóis, tartes variadas, folhados, donetes, massa sovada e até se descongelou uma alcatra que havia sido guardada da festa. O café foi comprado na loja americana e o queijo e a manteiga, esses então, são bem terceirenses. Açorianos, vá lá que o queijo deve ser de São Jorge! O pão, claro, será das Lajes. Não lhes pode faltar nada. Não pode parecer que nos falte alguma coisa. Uma mesa digna de príncipes. Uma receção de reis.

A família estará à espera. Vindos de todo o lado, a chegada de família da América é sempre um acontecimento único. Momento de confraternização familiar, só comparado ao Natal ou a um batizado. Sempre assim foi. Mesmo naquele tempo em que o avião chegava às quatro da manhã e todos se deslocavam ao aeroporto na ânsia de os ver. De os ver como estavam, muito brancos de ausência de sol, roupas garridas, anéis a brilhar em todos os dedos, unhas compridas coloridas, malões carregados de lembranças que seriam muito mais do que isso. A necessidade de se colmatarem dificuldades perenes, de trazer modernidade e cor às vidas que se arrastavam. As cartas que encurtavam distâncias. Os dólares que escondiam. Os repastos da espera serviriam de agradecimento, de forma de retribuir as lembranças. A tradição, tornou-se tradição, ficou.

O Joel e a Fernanda são terceirenses americanizados. São eles, somos todos nós que incorporámos hábitos, músicas, alimentos e nos indignamos quando alguém nos quer dar lições de coca-cola, barbie, donetes, levi’s, nike ou galinha frita. Quando alguém fala mal dos americanos, mesmo quando têm razão, como quando falam mal dos nossos familiares e nós não aceitamos, embora nós o possamos fazer. Eu posso falar mal deles, tu não, não tens esse direito. Há uma herança. Uma herança que nos moldou e nos acrescentou. Que nos faz diferentes entre os demais portugueses. Uma herança que, aos poucos, vamos deixando de ter vergonha de assumir. A isso chama-se maturidade e confiança.

Este ano de 2023 é um ano de celebração. Foi há 80 anos que os ingleses, ainda antes dos americanos, aqui instalaram a base militar. Os Cães do Mar, na sua peça “Sarrado Grande”, contam-nos essa história. Uma história de alegria, lágrimas, estranheza e uma capacidade infinda de mudança e adaptação por parte de um povo. Para quem ainda não assistiu à peça, terá oportunidade de a ver na Entrada Geral, no dia 6 de agosto. Vale mesmo a pena.

Também neste âmbito, as festas da Praia irão dedicar o seu cortejo de abertura ao tema, à História desta Base que se confunde com a História desta terra ao longo do século XX e já neste XXI. A tal herança que merece e deve ser contada e que a Judite Parreira, em boa hora, assumiu que este era o tempo de voltarmos a contar as nossas estórias, a nossa História, a mostrar quem somos e não ter vergonha de o fazer. E o que ainda haverá por contar? O que por aí andará escondido, não assumido?

Duas dessas histórias já foram contadas no passado recente. Pela mão do Luís Bettencourt, com o selo da Filarmónica União Praiense, a Praia desceu a rua da Sé, em Angra, a contar aventuras de aviadores, amores e rainhas de Inglaterra ou feitas inglesas. Fizemos diferente, dançámos e cantámos diferente, vestimos diferente. E só uma razão houve para isso. Gostamos de o ser. Não temos vergonha de o ser. Orgulhamo-nos de quem somos. Que venha a terceira, Luís! Tenho a certeza que tens muitas estórias de ingleses e americanos para contar.

Divirtam-se. Afinal de contas, que melhores festas existem do que estas? Perdoem-me os restantes, mas nenhumas conseguem bater as Festas da Praia! Venham elas!

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